Shirley Maria – Língua Portuguesa

MACABÉA, EM A HORA DA ESTRELA: UMA REFLEXÃO SOBRE A IMPORTÂNCIA DA CIDADANIA


Marco Flávio de Sá[1]

Shirley Maria de Jesus[2]

RESUMO

             Este artigo pretende analisar a obra de Clarice Lispector (2006), A hora da estrela, pelo viés literário, amparado pela ciência do Direito no que diz respeito à vida com justiça.  Alguns aspectos a serem tratados à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Carta Magna são a busca identitária dos menos favorecidos, a alienação cultural e social, a desigualdade social e regional, a exclusão social, a discriminação da mulher, dentre outros, a fim de demonstrar que quanto mais cedo se percebe a cidadania, mais cedo se constrói a consciência pessoal do que ela pode ser: qualidade ou instrumento.

Palavras-chave: cidadania, deveres, direitos, exclusão social, identidade

 ABSTRACT

This article intends to analyze the title of Clarice Lispector (2006), A hora da estrela, for the literary bias, supported by the science of law concerning to the life with justice.  Some aspects to be treat to the perspective of the Universal Declaration to the Rights of the Man are the quest for identity of the least favored classes individuals, the cultural and social alienation, the social and regional inequality, the social exclusion, the discrimination of the woman, amongst others, in order to demonstrate the soonest citizenship is realized the soonest is possible to construct the personal conscience of what it can be: quality or instrument.

Word-key: citizenship, duties, rights, social exclusion, identity

Clarice Lispector, de origem russa, aclamada pela crítica brasileira, abordou questões filosóficas profundas como a verdade e a condição humana em seus romances, contos e crônicas. São reflexões despertadas a partir de um fato aparentemente banal, mas que se apresenta, posteriormente, como produto incontrolável de um fluxo de consciência tortuoso e, às vezes, doloroso. E é precisamente nesses momentos que a obra da autora revela-se em toda a sua beleza e profundidade.

Em A hora da estrela (publicado em 1977), a autora, em seu último livro divulgado em vida, coerente com sua temática costumeira, brinda-nos com uma personagem denominada Macabéa – nordestina, simples e anônima -, que fora criada por uma tia beata, após a morte dos pais quando tinha dois anos de idade. A protagonista passa a acumular em seu corpo franzino, “herança do sertão”, todas as formas de repressão cultural – o que a deixa alienada de si e da sociedade, fato que ela não traduz tão claramente, mas que não deixa de ser referenciado pelo narrador: “Pois que vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável”. (LISPECTOR, 2006, p. 33)

Macabéa ignorava o motivo pelo qual se deslocou de Alagoas para o Rio de Janeiro, onde passara a viver com mais quatro colegas na rua do Acre, e por que trabalhava como datilógrafa. Vivencia um namoro “ralo” com o paraibano Olímpico de Jesus, que procurava ascensão social a qualquer preço. Macabéa nada possuía nesse sentido para ser a namorada “apropriada” para ele e perde-o para sua colega Glória, detentora dos atrativos materiais que ele ambicionava.

Depois dessa perda, vai procurar consolo na cartomante que lhe reforça a “nostalgia do futuro”, e quando seria feliz, Macabéa é atropelada por um luxuoso Mercedes Bens. Ferida de morte, a personagem vomita uma “estrela de mil pontas”1. Nesse momento, mascarada pela rotina do dia a dia, a personagem tem um momento de epifania que está bem representado pelo atropelamento – a “estrela” se liberta e passa a brilhar, livre da escuridão noturna e da cegueira em que todos nós vivemos. A morte simboliza a hora de a estrela brilhar em todo o seu esplendor. Esta é a “hora da estrela” de cinema, onde ela vai ser “tão grande como um cavalo morto”. E é também a hora da morte do narrador – identificado com a escrita do romance que se acaba.

Feita a síntese da obra, podemos dizer que LISPECTOR nos remete a diversas questões sociais, sendo duas delas a busca identitária pautada em classes sociais e a sobrevivência de pessoas que migram para os grandes centros urbanos. A autora lança seu olhar, principalmente, sobre a vida daqueles que vivem à margem da sociedade sem conhecer ao certo qual o seu papel nesta sociedade classista. E ao abordar isso, esbarra na questão da exclusão – temática abordada por diversas ciências.

Assim sendo, este artigo pretende abordar algumas das questões apresentadas acima, não somente pelo viés da Literatura, mas com o amparo da ciência do Direito no que diz respeito à vida com justiça – um dos objetos do Direito.

O Direito preconiza que todos têm direito à vida2, não à mera sobrevivência. E na obra da autora, percebemos que esse direito fundamental foi negado a Macabéa. Mas a quantas outras Macabéas este direito também foi negado? Segundo a narrativa, a personagem

Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. (LISPECTOR, 2006, p. 42)

A exclusão social que vitima a personagem Macabéa, serve de contraponto para a defesa, ainda que velada, de uma sociedade mais igualitária, na qual fossem garantidos direitos básicos a todos os indivíduos. Por certo, a estratégia utilizada pela autora foi a de revelar cruamente todo o abandono e violência a que estava sujeita aquela jovem, igual a tantas outras, para, a partir disso, despertar no leitor a sensação de inadequação daquela realidade.

No excerto anterior, podemos inferir, ainda, que a protagonista desconhece alguns conceitos básicos importantes na nossa sociedade, tais como: identidade, cidadão, cidadania, direitos e deveres.

Uma maneira de se compreender o conceito de identidade é percebê-la como distinção, como uma marca de diferença entre as pessoas, a começar pelo nome, seguido de todas as características físicas, de modos de agir, de pensar e da história pessoal. Construir a identidade implica conhecer os próprios gostos e preferências e dominar habilidades e limites, sempre levando em conta a cultura, a sociedade, o ambiente e as pessoas com quem se convive.

Ao voltarmos nosso olhar para a personagem Macabéa, percebemos que identificar-se com o que de fato ela é não é um processo fácil, mas apesar de não saber qual botão deve acender neste mundo que ela não compreendia muito bem, isso não a impede de tentar acioná-lo. E ela o fará, de certo modo, ao buscar sua própria identidade. E o espelho servirá como ponto de partida nesse processo. A personagem, através do reflexo de sua imagem, será capaz de vislumbrar dois momentos que denotam classes sociais distintas: a atual e a desejada. Vejamos, primeiramente, como ela se vê em sua condição social real:

Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (LISPECTOR, 2006, p. 27-28)

Pode-se dizer, a partir da narrativa, que seu reflexo denota a mulher sem atrativos, sem perspectivas profissionais, já que seu chefe iria demiti-la por não ser uma datilógrafa competente. Mas em outro momento, após o rompimento com Olímpico, outra imagem, ou seja, outra identidade será desejada ao pintar os lábios de vermelho diante do espelho: a da estrela Marilyn Monroe – diva desejada, símbolo de todas as classes sociais no que diz respeito ao belo, ao luxo e aceita por todos incondicionalmente já que se destaca porque é percebida e reconhecida pelas pessoas. Em outras palavras, como não bastasse sua origem e condição menos privilegiada, Macabéa não possuía sequer atributos físicos que justificassem sua aceitação. Ou seja, nem como objeto, a jovem consegue justificar sua acolhida no seio da sociedade.

Cidadania significa o conjunto de direitos e deveres pelo qual o indivíduo está sujeito no seu relacionamento com a sociedade em que vive. Ser cidadão é ter consciência de ser sujeito de direitos – detentor do direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, enfim, possuidor de direitos civis (direitos que concretizam a liberdade individual, como a liberdade de pensamento e livre movimentação, direito à justiça); políticos (direito de participar do poder político) e sociais (prerrogativa de acesso a um mínimo de bem-estar e segurança material). Mas este é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo organismo que é a coletividade, para cujo bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição. Somente assim se chega ao objetivo coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.

São definições sintéticas, que não abordam todas as implicações teóricas. Entretanto, podemos dizer que cidadania é a participação integral do cidadão na sociedade política, onde o Estado reconhece direitos e deveres a todos os cidadãos. Na esfera da atividade social, o Estado reconhece como prerrogativas: o trabalho, a produção, a política e o consumo.

A partir dos conceitos de cidadania e cidadão, reconhecemos sua inaplicabilidade na vida de Macabéa, na visão do narrador:

Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para que mais isso? O seu viver é ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça. (LISPECTOR, 2006, p. 25)

Macabéa, desprovida de informação, de formação cultural, não se reconhece cidadã, por isso, apenas vive sem questionamentos, sem maiores especulações sobre a sociedade da qual faz parte, mesmo sem o saber. E a culpa sentida pelo narrador, pode-se dizer que poderia vir a ser culpa por não instruir essa personagem sobre seus direitos e deveres.

É importante destacar que a referida obra aborda a realidade brasileira não apenas por trazer traços de nossa cultura vislumbrados na alagoana Macabéa como no paraibano de dente de ouro Olímpico. O livro assenta-se no contexto nacional onde o indivíduo é visto na sua dimensão universal: alienado, esmagado pela rotina, descaracterizado e perdido no anonimato dos grandes centros urbanos. LISPECTOR dissocia as unidades narrativas para mostrar a falta de ligações mais profundas na sociedade. E organiza o texto em ritmo lento, para contrastar com o movimento da vida nas grandes cidades. Filtra todos os fatos através de uma consciência que se isola do conjunto para demonstrar a solidão do homem moderno.

Essa solidão pode vir a ser um agravante para essa suposta alienação percebida na obra. Quando participamos ativamente da sociedade, percebemos que em grupos organizados é possível exercer a cidadania e conhecê-la como fonte de direitos e deveres de todo cidadão. É de fato constituir-se membro de uma comunidade – elo de uma engrenagem que não se movimenta sozinha, mas que aliena facilmente àqueles que não são detentores dos mínimos conhecimentos acerca de conceitos básicos, entretanto, primordiais.

É importante ressaltar, ainda, que a construção narrativa nos faz perceber que a autora pretende desvendar o mistério que se esconde sob essa casca de simplicidade:

(…) a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama (LISPECTOR, 2006, p. 19).

É difícil narrar porque o direito à vida permite ao homem a esperança de que a experiência política na sociedade seja segura mesmo na incerteza que perpassa a vida. Mas se Macabéa é um “parafuso dispensável”, como ter esperança de um futuro melhor como ela própria desejava? Destituída do saber, desconhece, ainda, outros direitos que lhe são pertinentes, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem:

II – Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição.

XXV – Toda pessoa tem o direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Tais direitos são garantidos em virtude da garantia à vida. Entretanto, na relação entre as classes sociais, Macabéa, em sua origem nordestina, é estigmatizada nesse mundo que não “enxerga” que esses migrantes também constroem a sociedade em questão e, portanto, devem gozar dos direitos a eles também atribuídos.

Conforme já dissemos, as personagens do romance, representativas da situação alienada dos indivíduos das grandes cidades, são tensas e inadaptadas ao mundo repetitivo e inautêntico que as despersonaliza. Muito mais símbolos que indivíduos, as personagens são construídas por meio de traços que caracterizam atitudes filosófico-existenciais.

Assim, Macabéa representa, de certa maneira, o homem moderno em face da sociedade técnica e consumista. É o homem dos grandes centros, acomodado e domesticado, incapaz de conduzir a sua própria trajetória existencial. É o ser humano desfigurado e descaracterizado, devorado, esmagado e carcomido pelas imposições da sociedade de consumo. Nesse sentido, é interessante observar que, na sua trajetória pela cidade, até o próprio nome Macabéa é devorado, passando a Maca e, finalmente, ela é devorada por um elemento típico da sociedade técnica – o carro (de luxo).

Por outro lado, pode-se perceber, ainda, que Macabéa, como um ser puro e inofensivo, vai sendo moldada e manipulada ao longo de sua trajetória existencial. E as consequências desse processo são a descaracterização, a desfiguração, a despersonalização. É a perda do direito à vida e à própria individualidade. É a desconsideração do poder de gozar os direitos e as liberdades. A vida põe-se pela natureza e impõe-se pelo homem. E como Macabéa não se vê como elo da experiência de construção dessa sociedade, ela é incapaz de portar-se como cidadã na exigência de seus direitos. Ela, portanto, é um animal fora de seu habitat, pois “faltava-lhe o jeito de se ajeitar”. (LISPECTOR, 2006, p. 27)

A postura de passividade e aceitação da ordem estabelecida, por exemplo, é revelada pelo fato de Macabéa jamais questionar as imposições do mundo que a cerca e oprime: “A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida”. (LISPECTOR, 2006, p. 32) “Ela era tola de perguntar? E de receber um “não” na cara? (LISPECTOR, 2006, p. 29) “Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim mesmo (…)”. (LISPECTOR, 2006, p. 40)

O paradoxo que se revela em A hora da estrela advém justamente da passividade de sua protagonista. A heroína não reage e sua inércia acaba por se transformar em uma forma de reação, pois tem o poder de incomodar ao narrador que, por sua vez, representa a consciência de todos os leitores. Assim, a completa ausência de defesa de Macabéa ante a realidade urbana que literalmente a consome, soa como uma denúncia à omissão do Estado quanto ao seu dever de zelar pelo bem-estar de todo e qualquer cidadão, pois não se pode conceber que em uma sociedade digna existam “parafusos dispensáveis”.

A postura de Macabéa gera a alienação em que o ser humano, acomodado e domesticado, vai aceitando tudo que lhe é imposto. E assim, manipulado e prisioneiro, o indivíduo vai perdendo a sua identidade e autenticidade, e passa a não ter controle de sua trajetória existencial.

Em outras palavras, o ponto de maior impacto na obra consiste no fato de que Macabéa sequer tinha conhecimento de que sua angústia decorria da sonegação de vários direitos inerentes à própria condição humana, o que lhe levava a adotar uma posição de conformismo em relação à dura realidade por ela enfrentada.

Dessa forma, isolado e acuado, enquadrado em um esquema de vida inócuo e absurdo (“Sinto que vivo para nada”, diz o narrador), o indivíduo é, paradoxalmente, um solitário: vive em meio às massas, mas ninguém o percebe – perdido que está no anonimato. O seu grito desesperado não é escutado; ao seu lado jaz apenas o silêncio da insensibilidade.

Delineada assim, a vida é um ofício cansativo e alienante. A monotonia das ações repetitivas e rotineiras do dia a dia geram desespero e cansaço, como diz o narrador-personagem: “Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias”. (LISPECTOR, 2006, p. 22) Diante dessa situação pungente, descaracterizado e desfigurado, coisificado pelas ações repetitivas da rotina, o indivíduo não mais faz a trágica pergunta: “quem sou eu?”, parando completamente de pensar. (LISPECTOR, 2006, p. 15)

Em face dessa situação dramática, só resta ao indivíduo mascarar-se, camuflando a verdade de uma existência niilista, marcada pela insensatez e pela absurdidade: “(…) existir é coisa de doido, caso de loucura. (…) Existir não é lógico”. (LISPECTOR, 2006, p. 21) Só lhe resta assumir o seu papel de ator e representar a sua parte no palco iluminado da vida, usando palavras bonitas e vazias, como exemplifica Olímpico que acredita que para vencer, para se ter um lugar nesse palco, é preciso matar e mentir.

A visão deturpada de Olímpico nos leva a refletir que a vida com justiça deve fazer parte do direito à vida, que guarda e resguarda a oportunidade justa de o cidadão tornar-se inteiro em sua individualidade pela certeza da solidariedade de todos. Mas até isso aqueles que vivem à margem da sociedade, às vezes, não conseguem perceber.

Confrontada com Olímpico, que tinha “dentro de si a dura semente do mal”, Macabéa contrapõe-se a ele por ainda ser capaz de gestos puros e poéticos: “Quanto a ela, até mesmo de vez em quando ao receber o salário comprava uma rosa”, diz o narrador-personagem (LISPECTOR, 2006, p. 37). Transposta para um meio hostil, que a descaracteriza e oprime, Macabéa é uma desajeitada – “gauche” – dentro da sociedade técnica. “Na certa mereceria um dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás, não é entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo”. (LISPECTOR, 2006, p. 40)

Tendo como ponto de partida a protagonista Macabéa, pode-se dizer que um dos propósitos do livro é a busca do “coração selvagem”, isto é, a procura do estado natural, pré-lógico, em que o ser era feliz por não estar atolado no lamaçal em que se encontra. É como se a própria autora nos dissesse que é necessário recuperar o selvagem coração da vida, perdido quando o homem historicamente perdeu sua liberdade instintiva.

Símbolo de um universo maior, Macabéa representa o bem, o ser puro e inofensivo que vai sendo prostituído pelas imposições sociais, ao longo de sua trajetória existencial. Nesse sentido, pode-se aproximá-la também de Lúcia, a protagonista de Lucíola: tal como Lúcia, ela também possuía dentro de si um “bicho rasteiro” ao qual desejava retornar: “não queria ser privada de si, ela queria ser ela mesma”. (LISPECTOR, 2006, p. 36-37) E não ser privada de si, é fazer parte da sociedade, é ter seus direitos assegurados; mais que isso é reconhecer que tais direitos existem e que se deve lutar por eles. Então, “Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra?” Ela não reage, porque é “doce e obediente”. (LISPECTOR, 2006, p. 29) Em outras palavras, é preciso reconhecer-se cidadão, ou seja, enquanto indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre para lutar por tudo aquilo que lhe é de direito, ao contrário de Macabéa:

Outro retrato: nunca recebera presentes. Aliás não precisava de muita coisa. Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Raimundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era “Humilhados e Ofendidos”. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? (LISPECTOR, 2006, p. 47)

A morte de Macabéa, no final, faz aflorar o coração selvagem – o “capim”, que havia nela (LISPECTOR, 2006, p. 35) – e a estrela cintilante se liberta para brilhar, “pois na hora da morte a pessoa torna-se brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes”. (LISPECTOR, 2006, p. 32) Das entranhas da esquelética alagoana, Clarice Lispector faz brotar Marilyn Monroe – a brilhante e cintilante estrela da beleza e da ascensão social. É o contraponto entre o estigmatizado e o plenamente reconhecido pela sociedade consumista e alienante.

A excepcionalidade da obra de LISPECTOR revela-se também mediante a consideração do momento histórico e pessoal em que foi concebida. O romance em questão foi publicado no mesmo ano do falecimento da autora que, durante todo o processo criativo do livro, lutava contra um câncer que a consumia a passos largos. A ideia da fragilidade e finitude do ser humano é, não por acaso, uma constante neste que foi o último romance da autora. Todavia, os maiores méritos de A hora da estrela são o vanguardismo e a sutileza da abordagem do tema da cidadania em um momento em que vigorava no Brasil um regime totalitário, no qual as liberdades e garantias individuais eram visivelmente tolhidas.

Podemos perceber a obra como um instrumento de denúncia. O total desamparo da protagonista acaba por se traduzir em uma poderosa arma, pois gera no leitor um sentimento de incômodo face àquela realidade, que passa a ser completamente intolerável ou mesmo indigesta.

Outro ponto de curiosidade em relação à obra em questão consiste na consideração de que pouco mais de uma década após a publicação desse romance, o Brasil passou a contar com uma nova Constituição Federal, destinada a garantir expressamente vários dos direitos sonegados a Macabéa.

A precisão de LISPECTOR ao retratar a violação de direitos sociais que, posteriormente tornaram-se garantidos pela própria Constituição da República, tamanha a sua importância na concepção de um Estado democrático de Direito, não pode ser relegada a mera coincidência, posto que em sua formação incluiu-se a graduação no curso de Direito, em 1943.

A consideração do texto da atual Constituição da República do Brasil serve como ponto de avaliação da importância e pertinência da obra em comento, vez que traduz a ressonância da crítica social encabeçada por LISPECTOR.

Com efeito, vários dos direitos sociais, então negados a Macabéa, hoje constam expressamente no rol das garantias e liberdades individuais asseguradas constitucionalmente a qualquer cidadão brasileiro ou estrangeiro residente no país.

A Constituição Federal de 1988 foi apelidada de “Constituição cidadã” justamente em razão de haver sido aquela que, dentre todas as demais, mais assegurou direitos e liberdades aos cidadãos brasileiros.

O artigo 1º da Constituição Federal de 1988 estabelece que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil consiste na cidadania, enquanto que o artigo 3º da mesma Carta Magna, em seus incisos I e III, elenca dentre os objetivos fundamentais da nação a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.

Cidadania é justamente o que foi negado a Macabéa, visto que sua trajetória foi marcada pela pobreza e consequente marginalização que desta advém.

Como já dito, Macabéa não tinha visão de mundo e também não era vista. Existia simplesmente, sem aspirações ou realizações. A falta de acesso a uma formação minimamente digna acarretou-lhe a exclusão do contexto social. Exclusão praticamente garantida à maioria dos que provinham da mesma região que a protagonista e como ela não tivera a sorte de um berço na elite minoritária. As desigualdades regionais são, portanto, fatores responsáveis pela alienação da personagem.

A crítica orquestrada por LISPECTOR prossegue abordando pontos como a discriminação da mulher e a violência contra ela praticada – aspecto que também não passaria despercebido à Assembléia Nacional Constituinte em 1988.

A atual Constituição da República assegura em seu artigo 5º o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, estabelecendo como o primeiro de seus termos a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações (artigo 5º, inciso I, CF/88).

Macabéa não é excluída da sociedade apenas por sua origem, classe social e falta de acesso à cultura, mas também e talvez, principalmente, por sua condição de mulher, o que a fragiliza ainda mais.

Olímpico compartilha com Macabéa vários dos fatores que acarretam a exclusão social, como a origem e a classe social, mas em nenhum ponto da obra ele é visto realmente como alguém que esteja totalmente à margem da sociedade. Em verdade, passa ele próprio à condição de um dos algozes de Macabéa, seja pelas constantes agressões verbais a que a submete, seja pelo desprezo que passa a sentir por ela, lançando-a ainda mais fundo no limbo dos irrelevantes e sem futuro.

O que diferencia basicamente os destinos de Macabéa e de Olímpico é o fato de, apesar de compartilharem a mesma origem, Olímpico ser homem, o que o coloca em condição superior à de Macabéa na hierarquia dos excluídos, permitindo-lhe maior facilidade para a adoção de uma postura ativa e não conformista frente às vicissitudes da vida.

A violência experimentada por Macabéa é explicitada na rudeza e insensibilidade dos comentários que lhe são dirigidos por todos os demais personagens. Até aqueles que tentam em princípio estabelecer empatia com a protagonista, dirigem-lhe simultaneamente palavras lacerantes que expõem cruamente o quanto a personagem é inadequada no contexto social.

Há nessa característica da narrativa certa dose de sadismo, como se a personagem merecesse a tortura que lhe infligem todos aqueles com os quais convive, quase como coerente punição por sua condição desfavorável.

O constituinte de 1988 mostrou atenção a mais nesse ponto, destacado também na obra de LISPECTOR, e consignou no artigo 5º, inciso III da Constituição da República, que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, assegurando ainda em seu inciso X, como invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

Por fim, merece destaque a previsão constante no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 do elenco dos chamados direitos sociais, assim entendidos como a educação; a saúde; a alimentação; o trabalho; a moradia; o lazer; a segurança; a previdência social; a proteção à maternidade e à infância, bem como a assistência aos desamparados.

Não houvesse a obra de LISPECTOR sido publicada com mais de uma década de antecedência, poderia haver quem justificadamente defendesse a impressão de que a autora teria se inspirado em tal elenco para descrever as privações experimentadas por Macabéa em sua trajetória, em tom quase que didático ou exemplificativo.

Mediante o exposto, podemos dizer que a valorização do direito à vida digna deve preservar as duas faces do homem: a do indivíduo e a do ser político. O ser humano é inteiro em sua dimensão plural e faz-se único em sua condição social. Igual em sua humanidade, o homem desiguala-se e singulariza-se em sua individualidade. E o direito à vida deve contemplar a unidade e pluralidade do homem, feito persona em todas as suas presenças e até mesmo em suas ausências.

Analisar o pensar social como requisito para a cidadania e, dentro da incorporação deste sentimento, não somente em relação aos direitos, mas em relação à cidadania como bem coletivo necessário a todos, também implica pensar em alteridade. Nessa observação, é indiscutível estabelecer a relação entre a indisponibilidade da cidadania e o conceito de autonomia da mesma, visto que cidadania tem sido vinculada a “recebimento” de direitos, a luta ou discussão por eles, inclusive, a cidadão “cumpridor de seus deveres” – o que em si apenas remete à manutenção do status quo vigente.

A alteridade pode conduzir a coletividade a ser a portadora do discurso de cidadania. E o pensar coletivo pode trazer, para a cena atual, atores sociais que possam caminhar na direção de sua autonomia e educação consciente para a participação nos espaços sociais. Quanto mais cedo se percebe a cidadania, mais cedo se constrói a consciência pessoal do que ela pode ser: qualidade ou instrumento. Espera-se que ela seja sempre instrumento, para que a natureza humana não se conforme com a sua qualidade adquirida, e deixe para trás a instrumentalização de sua condição, transformando a realidade para que em algum momento ninguém nasça não-cidadão como a personagem Macabéa:

Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer? (LISPECTOR, 2006, p. 30-31)

 

Notas

 

1 O surrealismo desta passagem revela-nos que a narrativa vai surgindo à mercê do fluxo de consciência do narrador.

2 “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” – artigo III, Declaração Universal dos Direitos do Homem.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 2012.

BRASIL. Declaração universal dos direitos humanos. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 2010.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2006.

 


[1] Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos. Graduado pela Faculdade de Direito Milton Campos. Professor Adjunto I do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva nas cadeiras de Direito Civil e Propriedade Intelectual. Coordenador de Atividades Complementares do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Advogado militante na área do Direito Empresarial. Belo Horizonte, Brasil, email: marcoflavio.sa@gmail.com.direito_artigo10.jpg

[2] Doutoranda em Linguística do Texto e do Discurso pela UFMG. Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduada em Consultoria Empresarial pelo Centro Universitário Newton Paiva. Professor Adjunto I do Centro Universitário Newton Paiva nas cadeiras de Língua Portuguesa, Leitura e Produção de Textos e Metodologia Científica. Belo Horizonte, Brasil, email: shyrma@terra.com.br. SHIRLEY.jpg