Shirley Maria – Língua Portuguesa

Vivemos uma crise ética contemporânea?

Crise não significa apenas “aberração sobrevinda no curso de uma doença, momento decisivo, ataque de nervos, situação política do governo*”, desastre iminente, mas também julgamento de uma situação. Ela provém da desorientação das pessoas, ou seja, provém do questionamento dos modelos tradicionais. A religião, por exemplo, é um “legado” de pai para filho. Esse recebe uma orientação, um arsenal de respostas, entretanto, ao se questionar o porquê dessa crença, introduz-se uma crise, um momento de discernimento que o faz perder o chão. E não é o que acontece com a educação a partir do momento que o Ministério da Cultura se propõe a bancar a edição de centenas de milhares de livros de autores clássicos brasileiros “facilitados”, começando com Machado de Assis? A reescrita das obras permite a troca de vocábulos, de frases e isso descaracteriza a obra do autor. Portanto, o que os leitores lerão não será a obra original. Para Lya Luft “inútil trabalho, gasto inútil, logro do leitor (…)”**. Se isso não for uma crise ética contemporânea, também não estamos preparados para entender o motivo desse projeto já em execução: facilitar a leitura para o leitor (ignorante) despossuído da educação necessária para ler esse autor. Tudo isso para reduzir o ensino ao mais elementar, ao mais primário em vez de elevar o seu nível em todos os graus. Mas que tipo de entendimento é esse, já que vivemos uma época de abrir mão dos saberes especializados para adquirir uma visão mais geral e global? É preciso sair da nossa zona de conforto para aprender novos conhecimentos. A crise ética exige vários olhares e deve sair da universidade e migrar para o âmbito social. É um debate social. Devemos ser um ser de cultura, já que essa não é um mecanismo de regulação. Não podemos deixar de questionar a chegada de alunos à universidade, muitas vezes, um ingresso que carrega certa margem de preconceito, pois outros alunos questionam a chegada daqueles que têm preferência por não ter estudado, por ter preparo, mas por sua raça, sua origem, seu nível econômico e, agora, por ter lido um falso autor brasileiro clássico e tem uma vaga garantida no ensino superior. A educação deve ser igual para todos. Para isso, é preciso que o aluno aprenda ortografia, gramática a expressar-se – argumentando e questionando – e a leitura e interpretação/compreensão de textos irá ajudá-lo a adquirir essas competências necessárias que devem ser trabalhadas desde o ciclo básico de ensino. Os bons alunos, aqueles que tiveram acesso a boas escolas (aquelas que realmente ministram conhecimentos necessários à boa educação e formação do discente), reclamam do baixo nível do ensino universitário, os demais, que não têm culpa dos desacertos do sistema educacional brasileiro, procuram se equilibrar na corda bamba educacional da melhor maneira possível e exercem sua profissão como podem.

A reescritura das obras não é o caminho para se “conseguir ler” determinados autores ou para ampliar o volume de leitura desse aluno. “Para ler um romance de Machado, não é preciso ser um gênio nem é necessário traduzir os termos ou frases mais difíceis para um linguajar coloquial: basta colocar no fim do livro (…) um conjunto de verbetes explicando os termos menos usados, como um minúsculo dicionário. O leitor aprende, cresce, instrui-se e mesmo que não vire leitor dos clássicos, terá uma ideia do que o país já produziu nesse sentido.” Também não é justificativa fazer a versão infantil – isso é descaracterização do autor da mesma forma. Basta que o leitor leia em seu tempo. Os professores também precisam ter discernimento de quando indicar a leitura de um clássico: o aluno já tem maturidade para lê-lo já que sabemos que lhe faltam outras ferramentas negligenciadas pelo próprio ensino? “(…) se tal projeto já aprovado e financiado pelo Ministério da Cultura se afirmar, o culto à mediocridade, que impera, vai ter feito mais um gol de vitória. Mas, afinal, é a Copa”**.

* BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2001.

**Leia também o texto de Lya Luft, “Aulas de mediocridade”, publicado na Veja, no dia 21/5/14.